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sábado, 18 de março de 2017

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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
Jorge Amaro
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon há 29 de junho de 1900 e desapareceu, em missão oficial de guerra, há 31 de julho de 1944. Autor de muitos livros, como: Terra dos Homens, Piloto de Guerra, Correio Sul, Vôo Noturno, Cidadela e O Pequeno Príncipe. Sua obra deixa evidente uma experiência humana profunda e inquieta, na qual a solidão, o silêncio, as imagens do deserto, o problema do tédio e da morte, do prazer e da liberdade, do sentido da vida são temas constantes.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Nesta obra “O Pequeno Príncipe” o autor traduz, em termos literários, o diálogo interrompido e reiniciado entre o adulto e a criança que vive dentro de todos nós. Logo no início, surge a criança que observa uma gravura de uma jibóia engolindo uma fera. Imediatamente a criança, por identificações projetivas, estabelece vínculos com a situação da gravura, onde há um devorador, que é a jibóia, e um devorado, que é a fera. A seguir, o pequeno menino, a criança da nossa história, expressa em um desenho, a primeira simbolização concreta de seu núcleo terrorífico, onde surge uma jibóia digerindo um elefante.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      A jibóia passa a ser, por identificação projetiva, a figura condensada e perigosa da mãe-pai-devorador e a pequena fera-elefante, a criança-menino devorado. Quando o autor procura relatar a tentativa da criança de dialogar com os adultos sobre seu desenho e encontra neles incompreensão e indiferença, está expressando, através destes adultos, as figuras parentais pouco sensíveis e intuitivas à percepção do mundo infantil. Isto dificultou o diálogo da parte parental-adulta com a parte infantil-criança da personalidade para poder fornecer a esta criança meios de desenvolvimento e de comparação entre o mundo adulto-parental, no vínculo da realidade, com figuras parentais monstruosas, em relação à criança, no vínculo da realidade psíquica.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Este diálogo necessário é expressado nesta obra, como interrompido, em prejuízo do desenvolvimento harmônico desta criança. Aqui há uma identificação introjetiva de figuras parentais não sensíveis e intuitivas na percepção dos sentimentos da mente infantil. Surge uma criança solitária, curiosa e sedenta de compreensão em um diálogo com figuras parentais-adultas e insensíveis.
      Já adulto, a personalidade do nosso personagem procura viajando pelo mundo todo a busca; mas a busca de algo não bem esclarecido, a busca de resposta e do reinício deste diálogo interrompido.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Quando criança, procurava mostrar o desenho para as outras pessoas e a resposta era sempre a mesma, ou seja, não compreendiam a comunicação implícita. Respondiam como sempre: “é um chapéu” , uma vez que para percepção adulta era um desenho inofensivo e para a percepção da mente infantil, era a simbolização da mãe-pai-monstro devorador, engolindo uma fera-criança. Por meio do enredo e dos diálogos surge um homem-criança, solitário que apresenta-se como que dividido em: uma parte formal-adulta, porém sem vínculos mais profundos nos seus relacionamentos e um menino-criança, que busca alguém que o compreenda e um meio para que possa simbolizar e expressar todo este seu drama psíquico.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Assim se expressa: “Vivi portanto, só, sem amigos com quem pudesse realmente conversar, até o dia, cerca de seis anos atrás, em que tive uma pane no deserto do Saara”. Com esta frase nós constatamos a vivência de solidão deste homem-criança-adulto que necessitava encontrar alguém sensível para poder reatar este diálogo interrompido.
      A impressão que nos deixa a leitura deste livro é que neste momento em que surge a cena do deserto de Saara é exatamente o momento do reinício do diálogo interrompido, ou seja, figuras parentais e a criança intra-psíquica deste adulto solitário.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Ao surgir um menino-pequeno príncipe, que aparece subitamente no meio do deserto, inicia-se um diálogo com este adulto-aviador, o que nos parece que este menino é a simbolização da criança do aviador em reinício de diálogo com o adulto-figuras parentais do próprio indivíduo. É um splitting (excisão, separação) de duas partes do mesmo sujeito, ou seja, a parte criança e a parte adulto-figuras parentais. Esta criança-pequeno príncipe inicia o diálogo pedindo um desenho de um carneiro. Aqui surge a necessidade da criança de simbolizar suas vivências, suas fantasias inconscientes como meio necessário ao seu próprio desenvolvimento.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Sabemos, pela contribuição da psicanálise, especialmente pelos artigos de Melanie Klein que, o amor, desejos agressivos e libidinosos são transferidos do primeiro e único objeto: a mãe, para outros objetos e desenvolvem-se novos interesses que se convertem em substitutos da relação com o objeto primário. Este objeto primário não é só o bom seio externo, mas também o internalizado. Em todos estes processos, a função de formação de símbolos e de atividade de fantasia é de grande importância. Quando surge a ansiedade depressiva e particularmente, como início da posição depressiva, o ego se sente impelido a projetar, a desviar e distribuir desejos e emoções, assim como a culpa e um anseio reparador entre os novos objetos de interesse.
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      A importância da formação e elaboração de símbolos no desenvolvimento do ego, foi uma das grandes contribuições à psicanálise por meio dos trabalhos de Melanie Klein.
      Nesta história do Pequeno Príncipe observamos o reinicio da formação de símbolos, da formação de sonhos e do trabalho mental com estas camadas terroríficas da personalidade. O que nos parece, é que até este momento o personagem aviador-adulto-figuras parentais de um lado e o menino-pequeno príncipe-criança do outro, que deveriam estar integrados dentro de uma mesma personalidade, trabalhados e amadurecidos, estavam até então, excisados e estagnados, impedidos desta integração com grandes prejuízos no desenvolvimento integral da personalidade.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Consequentemente a manutenção de uma criança com o diálogo interrompido com a parte das figuras parentais promove vivências de solidão.
      Quando o adulto-figuras parentais-aviador relata que estava com dificuldade de desenhar, já demonstrava nesta expressão que tinha dificuldade de sonhar, de simbolizar. Após várias tentativas e diálogo entre o aviador-adulto-figuras parentais e a criança-pequeno príncipe surge uma caixa desenhada, onde dentro estaria preso o carneiro. Observamos que o carneiro e a caixa se tornaram, por identificação projetiva simbolizada, de partes do self projetadas.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      No transcorrer dos diálogos verificamos que surge um movimento de relação entre o mundo da fantasia, dos sonhos da criança e o mundo da realidade do adulto. O pequeno príncipe representa o mundo da fantasia, do sonho da criança e o aviador o mundo da realidade do adulto que agora começavam a integrar-se. No início os dois mundos estavam excisados, agora porém, começavam a se integrar. Assim, quando neste livro se lê: “dia a dia eu ficava sabendo mais alguma coisa do planeta, da partida e da viagem, mas isso devagarzinho, ao acaso das reflexões, e foi assim que vim a conhecer no terceiro dia o drama dos baobás”.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Todo desenrolar do interesse em relação a este carneiro para que ele comesse os arbustos, era um interesse da criança-pequeno príncipe, de eliminar os arbustos do seu planeta. Nestas condições, o carneiro passa ser a simbolização de uma função protetora. Quando o autor escreve: “com efeito, no planeta do principezinho havia, como em todos os outros planetas, ervas boas e más, por conseguinte, sementes boas de ervas boas e sementes más de ervas más. Mas, as sementes são invisíveis. Elas dormem no segredo da terra até que um cisme de despertar. Então ela desperta e lança timidamente para o sol, um inofensivo galhinho.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Quando se trata de uma planta ruim, é preciso arrancar logo, mal a tenhamos conhecido. Havia sementes terríveis no planeta do principezinho, as sementes de baobas. O solo do planeta estava infestado e um baoba, se a gente custa a descobri-lo nunca mais se livra dele. Atravanca todo o planeta e se o planeta é pequeno e os baobas numerosos, o planeta acaba rachando. É uma questão de disciplina, dizia o principezinho, quando a gente acaba a toilete da manhã, começa a fazer com cuidado a toilete do planeta. é preciso que a gente se conforme em arrancar regularmente os baobas logo que se distingam das roseiras”.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Constatamos no transcorrer destes diálogos, que o planeta, a roseira, os baobas, o carneiro, são os elementos simbólicos por meio dos quais o aviador reinicia o processo de elaboração, o processo de sonhar e trabalhar com essas fantasias inconscientes terroríficas da figura condensada mãe-pai-devorador e da criança-devorada. Verificamos também que, quando se refere ao planeta do pequeno príncipe, há neste planeta a expressão, na elaboração literária, do processo primário do inconsciente. No processo primário não há noção de tempo real, não há cronologia e há predominância do princípio do prazer, enquanto que, no mundo adulto existe cronologia e a prevalência do princípio da realidade.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Verifica-se por exemplo, a seguinte frase: “mas do teu pequeno planeta, bastava apenas recuar um pouco a cadeira e contemplava-se o crepúsculo todas as vezes que desejava-se. Um dia, eu vi o sol se por quarenta e três vezes”. Portanto, dentro deste mundo infantil, deste mundo inconsciente, regido por este processo primário, as fantasias são, de um lado idealizadas e do outro, terroríficas.
      Surge na expressão daquela única rosa, no planeta do pequeno príncipe a simbolização, por meio da identificação projetiva do seio bom idealizado, da figura materna boa idealizada e única.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Quando observamos a seguinte frase: “se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar, em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla. Mas, se o carneiro come a flor, é para ela, bruscamente como se todas as estrelas se apagassem”. Aqui temos a simbolização da figura materna como o único objeto de amor e de proteção, e sem ele é a escuridão, é a morte.
      A irritação da criança-pequeno príncipe é devida à falta de sensibilidade e o não entendimento do adulto-aviador-figuras parentais, da vivência da realidade psíquica desta criança e da necessidade que ela tem desta fixação como o único objeto de amor.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Nestas condições todo diálogo é feito no sentido de armar um meio de proteger este objeto de amor, a rosa ameaçada e também o próprio planeta ameaçado de ser destruído. As ervas de sementes más e as ervas de sementes boas são os objetos internos que se exteriorizam no mundo exterior. Os baobas que surgiriam das ervas de sementes más e que se desenvolviam formando árvores frondosas, foram desenhadas pelo autor e surge no desenho de uma árvore muito grande e em cima dela um pequeno menino com um machado.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      A árvore é a simbolização, por identificação projetiva da grande e intensa destrutividade expressada por fatores universais, como voracidade e inveja que no transcorrer do desenvolvimento do menino-homem ameaçam, não só a roseira (objeto bom idealizado) como o próprio planeta (o sujeito e o objeto).
      As angústias persecutórias são simbolizadas nos baobas como uma forma de controle e expressão da destrutividade do ser humano. A figura persecutória central representada pelos baobas (voracidade, inveja) é acompanhada pelas sementes boas, ou seja, a boa relação mãe e filho (a gratidão e o amor).
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      O rito obsessivo da toilete matinal do pequeno príncipe, o arrancar de baobas logo que se distingam das roseiras e ainda o pequeno menino com um machado em cima da árvore para cortá-la, representam os processos primitivos, onde o ruim tem que ser extirpado, eliminado, onde a convivência integrada do bom e do mal torna-se impossível. Isto acontece porque o menino e o grande baoba representam um ego infantil e fraco, frente a fortes forças destrutivas durante o crescimento.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Inicialmente, o carneiro é trazido como proteção para comer os pequenos arbustos baobas. Surge aqui o início do uso da identificação projetiva destes fatores destrutivos que inicialmente são internos e que agora são projetados e simbolizados externamente nos baobas. Como a energia expelida é de destrutividade, os baobas se tornam persecutórios e precisam ser re-introjetados para desaparecer a perseguição externa. Surge então o carneiro-criança que engole os baobas, come os baobas. Como vemos as primeiras funções usadas são a identificação projetiva e a identificação introjetiva.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Esta função de introjeção, de comer no sentido de devorar e eliminar o ruim, se de um lado protege, de outro lado ameaça de engolir, de eliminar o bom. Engolir a roseira. É aqui que a mente primitiva se utiliza de um outro mecanismo, de uma outra função que é a repressão. Surge a idéia da caixa (repressão) que irá aprisionar o carneiro.
      Ao descrever o planeta surgem os vulcões onde existem erupções vulcânicas como fagulhas de lareira. Os vulcões representam as simbolizações dos processo uretrais e anais como funções de expelir, um meio de expelir partes do self.
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      No transcorrer deste relato literário surge um momento da separação do pequeno príncipe e a rosa.
      Toda separação produz vivências de perda e expressões de luto. Durante o enredo o pequeno príncipe deveria sair do seu planeta (mundo infantil) e começar a conhecer outros planetas, outros mundos (mundo adulto), mas deveria para isto separar-se da rosa. Aqui surge já a alegoria do processo de separação da criança e o seu primeiro objeto de amor, ou seja, a mãe e investir em outros objetos, como por exemplo, o pai.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Observamos por meio do texto o equacionamento desta separação com a vivência persecutória de que o objeto de amor separado, fica ameaçado de morte, ou seja, “os ventos, os bichos, as plantas más que poderiam destruir a rosa” . Esta separação, por meio de vivências primitivas equaciona a separação com o objeto de amor ameaçado de morte, o que fomenta culpa. Verificamos no transcorrer do relato da viagem do pequeno príncipe a outros mundos, que a simbolização feita inicialmente foi de mundos habitados por figuras masculinas.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      O mundo onde havia um rei, outro um homem muito vaidoso, um outro onde havia um alcoólatra, um outro mundo um homem de negócios que contava as estrelas, um outro onde havia um homem que ascendia as lâmpadas. Ao descrever estes diferentes mundos expressava a relação com o segundo objeto, objeto paterno. Muitas funções foram projetadas nestes novos mundos. Assim, a função de idealização e onipotência (o rei), a função narcísica (o homem vaidoso), a função de voracidade (o alcoólatra e o homem que queria mais estrelas, mais estrelas), a função da omnipotência do pênis (o homem responsável pela escuridão e pela luz).
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Quando o pequeno príncipe chega no planeta terra é uma expressão alegórica de suas relação com outras pessoas. Quando verificou a existência de dezenas de rosas iguais a sua, era o contato com dezenas de mulheres semelhantes a sua mãe, ao seu primeiro objeto de amor. Mas, ao verificar a humanidade desta mãe, de ser uma mulher como as outras e a desmistificação, caindo portanto a idealização, surge uma depressão na criança. O texto relata: “e ele sentiu-se extremamente infeliz; sua flor havia lhe contado que era a única de sua espécie em todo o universo.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Eu me julgava rico de uma flor sem igual, e é apenas uma rosa comum que eu possuo. Isso não faz de mim um príncipe muito grande e deitado na relva ele chorou”. Verificamos aqui, o sofrimento pela desidealização do objeto materno.
      O texto a seguir promove o diálogo entre a raposa e o pequeno príncipe. De um lado, aparecem homens que com os seus fuzis caçam e matam raposas, e a raposa que por sua vez, caça, mata e come galinhas. Então verificamos que através deste diálogo surge um mundo de realidade de ser morto e devorado, onde há um devorador e um devorado.
Jorge Amaro
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      Através desta munição de realidade do mundo cotidiano, o texto procura demonstrar a reedição do processo devorador-devorado.
      No diálogo entre a raposa e o pequeno príncipe, surge a expressão cativar. O texto assim descreve: “é uma coisa muito esquecida, diz a raposa. Significa criar laços. Tu não és ainda para mim, senão um garoto, inteiramente igual a cem mil outros garotos e eu não tenho necessidade de ti e tu não tens necessidade de mim, não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas, mas se tu me cativas nós teremos necessidade um do outro; serás para mim único no mundo e eu serei para ti única no mundo. Existe uma flor, disse o menino, eu creio que ela me cativou”.
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      Surge aqui a primeira manifestação da elaboração da maneira de criar vínculos. De um lado, um vínculo destrutivo, caçador e caçado, devorador e devorado e de outro, um vínculo amoroso cativar e ser cativado, que estão excizados (splitting). Assim, ao elaborar o processo do vínculo amoroso e do vínculo destrutivo, constatamos no texto: “ mas se tu me cativas minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra, o teu me chamará para fora da toca como se fosse música”.
Jorge Amaro 
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      Em uma outra parte do texto constatamos: “o trigo para mim é inútil, os campos de trigo não me lembram coisa alguma, mas tu tens cabelos cor de ouro, então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti e eu amarei o barulho do vento no trigo”. Verificamos aqui que surge a vivência do vínculo amoroso e a vivência da saudade da relação com o objeto bom. Constatamos também, pelas expressões simbólicas no texto a função de responsabilidade pelo vínculo e pelo objeto. No texto lemos: “então tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa”. Surge então a responsabilidade, a culpa na vivência com o objeto de amor, a vivência com o objeto bom.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      O objeto bom precisa ser bem diferenciado do objeto único primário materno idealizado, ou seja, a desmistificação do objeto materno idealizado. Em última análise o processo de poder manter o vínculo amoroso em supremacia ao vínculo destrutivo, porém não por meio dos processos primários, onde há um único objeto sem o qual tudo é escuridão e morte. A própria escolha do deserto como meio para simbolização e psicodramatização deste drama é também a simbolização e a expressão do seio seco, esvaziado, perdido e a busca de um poço onde houvesse água; era a busca e o reencontro com o seio bom, cheio de leite.
Jorge Amaro 
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      Surge neste deserto o diálogo entre o pequeno príncipe e a serpente. A serpente fala por enigmas. No texto lê-se: “mas por que falas sempre por enigmas? Eu os resolvo todos, disse a serpente”. Verificamos aqui o problema da esfinge, o problema do segredo, o segredo que deve ser decifrado. A serpente está representando, portanto, também a elaboração do segredo, a mãe que tem o segredo da fecundidade, da vida e da morte. Assim, lê-se no texto: “aquele que eu toco eu devolvo à terra de onde veio, continuou a serpente”. A mãe que devolve a criança para dentro do útero, para aquele mundo maravilhoso da relação mãe e filho; a volta àquela vivência de paz total, a volta ao idealizado.
Jorge Amaro
Jorge Amaro 
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      Esta regressão representa no desenvolvimento da criança a morte, portanto, buscar isto, trabalhar por isto é buscar a própria morte. A cobra representa, ao mesmo tempo, a busca da morte. O pequeno príncipe se deixa picar voluntariamente pela cobra, para viajar e aproximar-se de novo da mãe idealizada da rosa e planeta da infância. É retornar ao mundo fantasioso idealizado do processo primário, a um retorno ao estado anterior, primitivo o qual está diretamente relacionado com o instinto de morte.
Jorge Amaro 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY “O PEQUENO PRÍNCIPE”, SEGUNDO A CONCEPÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA KLEINIANA 
      A impressão que nós obtivemos deste trabalho de Antoine de Saint- Exupéry é que o autor procurou elaborar, com seu gênio literário toda uma estrutura psicodinâmica humana. Sabemos que o mundo da realidade é um mundo relativo, é um mundo limitado e o mundo da realidade psíquica é um mundo ilimitado, é um mundo atemporal. O corpo, as coisas da terra, são coisas relativas e limitadas.
Jorge Amaro 
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      Ao expressar: “eu não posso carregar esse corpo, é muito pesado, mas será como uma velha casca abandonada, uma casca de árvore não é triste”. Observamos aqui a desvalorização do corpo e a desvalorização da limitação no mundo da realidade e a super valorização daquele mundo idealizado, da volta aos objetos primários, aos objetos idealizados, ou seja, a busca da morte.
Jorge Amaro

o defensor do individuo

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94
ALCEU - v.5 - n.10 - p. 94 a 115 - jan./jun. 2005
O “defensor do indivíduo”:
Hermann Hesse e o processo de massificação
nas primeiras décadas do século XX
Ana Lucia S. Enne
1. Algumas propostas iniciais
P
or ocasião das comemorações dos 60 anos do escritor alemão Hermann
Hesse, seu conterrâneo e contemporâneo Thomas Mann, também cole-
ga de ofício e amigo de longa data, escreveu a seu respeito as seguintes
palavras, publicadas no jornal Neue Zürcher Zeitung no ano de 1937:
Nesta oportunidade, podemos voltar a ser alemães de coração, dizer sim
ao que é alemão, e com orgulho profundo e complexo, sentimo-nos ale-
mães. Pois nada há de mais alemão do que esse escritor e a obra de sua
vida – nada mais alemão no velho sentido, alegre, livre e inteligente, a
quem o nome alemão deve sua melhor fama e a simpatia da humanidade.
1
As palavras de Thomas Mann são reveladoras em diversos sentidos, al-
guns de extrema importância para a proposta deste artigo. Vejamos: no elogio a
Hesse através de uma associação do escritor – vida e obra – com a “verdadeira
Alemanha”, Mann está falando de uma herança literária e humanista que remon-
ta aos clássicos, principalmente Schiller e Goethe, e aos primórdios e continui-
dades do Romantismo alemão, que iniciou-se em finais do século XVIII e atra-
vessou o século XIX.
2
Falar de Hesse como herdeiro legítimo desta tradição é apontar, por defi-
nição, algumas das caraterísticas mais fortes de sua trajetória como autor, exata-
mente aquelas que remontam ao Romantismo: a ênfase no indivíduo, o proces-
95
so de tomada de consciência de si, o olhar para “dentro”, o sofrimento como via
de conversão e transformação do sujeito, a busca de aproximação com a via ori-
ental, a busca da singularidade e da distinção, o desencantamento e estranhamento
do homem frente à cultura objetiva em que sua subjetividade se insere, a denún-
cia do filistinismo, enfim, o processo de autodescoberta do indivíduo, de Bildung,
não sem dores, não sem percalços, na direção de si mesmo, de sua rendição à
interioridade que o constitui e lhe dá significado.
3
Tais características, entre outras, vão aparecer com maior ou menor inten-
sidade em vários dos escritores que perpassaram o Romantismo alemão no sé-
culo que antecedeu ao período criativo de Hesse. Aparecem com eficácia nos
romances de formação (Bildungsromane) e serão objeto também de outros auto-
res do século XX, como o próprio Thomas Mann, razão de boa parte da aproxi-
mação dos dois autores. Há muito dos processos de Bildung – cultivo de si – e
Beruf – vocação e chamado – nas obras de Hermann Hesse, em especial em O
lobo da estepe, culminância deste empreendimento ao qual Hesse se dedicou, como
já indicado no título deste trabalho, o de “defensor do indivíduo”, de sua singu-
laridade e de seus diversos renascimentos e superações de si. Mais adiante em
sua exaltação ao compatriota, Mann afirma: “Esta obra casta e ousada, romântica
e ainda assim intelectual, está plena de tradição, solidariedade, memória, intimi-
dade, sem ser nem um pouco epigonal.”
4
Se, então, podemos perceber, nas palavras carregadas de reconhecimento
dirigidas por Thomas Mann na direção de Hesse,
5
a ponte entre os traços
constitutivos do Romantismo e sua condição de herdeiro legítimo desta tradi-
ção, por outro lado as frases de Mann nos facultam a possibilidade de perceber a
inserção de Hesse no seu tempo, onde condições diversas criavam circunstânci-
as e cenários bem diversos daqueles onde, para Mann, se encontrava a Alemanha
“no velho sentido”. Hesse é, pois, um ícone de uma Alemanha não mais existen-
te, uma oportunidade rara de preservação de valores, propósitos e símbolos
aparentemente perdidos no caos instaurado nas primeiras décadas deste século.
Não só as grandes guerras e seus anos entrementes de insegurança cria-
vam um cenário novo e profundamente influenciador para a literatura alemã,
mas também o desenvolvimento de uma literatura de massa, em escala industri-
al, transformando a arte predominantemente em mercadoria, constituíram um
pano de fundo com clara relevância na obra de Hesse e de outros tantos autores
do período. As guerras e a instauração de um modo de vida burguês calcado em
um amplo sistema de valores massificado vão ser tema constante de reflexão de
Hermann Hesse, criando situações onde os atributos do Romantismo do século
XIX colocam-se em intensa relação e negociação com os traços dos novos tem-
pos. Muitos não resistiram e sucumbiram ao fascínio ou pavor destes últimos, e
é também neste sentido que Thomas Mann congratula Hermann Hesse por ter
96
conseguido manter-se fiel ao melhor da tradição, conjugando-a com o complexo
contexto político, econômico e social deste início de século. Essa capacidade de
conjugar o novo e o velho, extraindo de ambos o sumo, é destacado por Mann
como indicativo da autonomia e relevância da obra de Hesse. Ainda nas celebra-
ções pelos 60 anos de Hesse, Mann dá indicações desta propriedade conciliadora
da obra de Hesse: “Ela tem o timbre romântico, o humor crispado e hipocon-
dríaco da alma alemã, orgânica e pessoalmente ligado a elementos e naturezas
diferentes, muito menos emotivos, de criticismo europeu e psicanálise.”
6
Este artigo tem, portanto, algumas propostas fundamentais. Em primeiro
lugar, exatamente a de perceber esta complexidade da obra de Hesse: ao mesmo
tempo preservador de valores caros ao Romantismo, mas também vivenciador
de seu próprio tempo e suas contradições inerentes. Além disso, se busca aqui a
reflexão sobre a forma pela qual, na obra de Hermann Hesse, a construção da
defesa de um individualismo qualitativo, no sentido proposto por Simmel,
7
marcado pela singularidade, interiorização e consciência de si, aponta para a visão
que Hesse manifesta acerca da construção da pessoa moderna ocidental e seus
dilemas frente ao processo de massificação da cultura no decorrer da primeira
metade do século XX. E, finalmente, indicar o quanto a percepção da flexibilização
das identidades, temática tão cara aos analistas da contemporaneidade, já se en-
contra presente nos escritos de Hesse publicados nas primeiras décadas do sé-
culo XX, indicando um processo de descentramento e desencaixe característico
da modernidade.
2. O indivíduo toma consciência de si
Não há como negar o paralelo entre a vida de Hermann Hesse e sua obra
literária. Assim como seus personagens empreenderam diversas viagens em busca
da verdade interior, em busca da construção da unidade individual como saída para
o caos externo e massificador, também o autor trilhou em sua vida caminhos simi-
lares, marcados por fugas e reencontros, viagens e renascimentos, até a possibili-
dade do encontro consigo mesmo na escolha de um estilo de vida marcado pelo
recolhimento e pela contemplação, além de intensa produção criativa.
Como aconteceu com Hesse em sua vida real, vários de seus personagens
precisam romper com a infância luminosa e protegida de uma família burguesa e
pietista. Hermann Hesse é filho de um missionário alemão e de uma filha de
missionários alemães nascida na Índia. Esses dois pólos vão ser marcantes tanto
na vida quanto na obra de Hesse, que se confrontará recorrentemente com o
fascínio pela segurança e luminosidade de uma vida burguesa e a necessidade de
questionar essa vida.
8
Não por acaso, o jovem Emil Sinclair, em Demian, desco-
97
bre que existe um “modo sombrio” para além do “mundo luminoso” oferecido
por sua confortável vida familiar vivenciada em sua infância. O pequeno Sinclair
assim define o pequeno mundo burguês que o “protegia” do mundo externo:
Desses dois mundos, um se reduzia à casa paterna, e nem mesmo a abar-
cava toda; na verdade, compreendia apenas as pessoas de meus pais. Esse
mundo era-me perfeitamente conhecido em sua maior parte; suas princi-
pais palavras eram papai e mamãe, amor e severidade, exemplo e educa-
ção. Seus atributos eram a luz, a claridade, a limpeza. As palavras carinho-
sas, as mãos lavadas, as roupas limpas e os bons costumes nele tinham
centro.
9
A construção de uma representação simbólica para a família ocidental é a
base desta apropriação burguesa do universo familiar como o espaço do confor-
to e segurança associados ao controle e regulação dos indivíduos. A luminosidade,
o conforto, a segurança e as regras austeras da família burguesa, simbolizada pela
figura da casa paterna e pela própria figura dos pais, reaparecem em várias obras
de Hesse, além de Demian. O jovem brâmane em Sidarta, embora vivendo em
uma outra sociedade, de traços orientais, também vivencia estas sensações. Da
mesma forma, o pequeno atormentado de “Alma de criança”, conto de O último
verão de Klingsor, faz da lembrança da casa paterna o ponto de partida para sua
narrativa, onde a libertação do mundo luminoso se faz pelo doloroso processo
de encontro com o mundo sombrio da falta e da culpa, culminando com o
desmantelamento de um sonho infantil de permanência no intocável aconchego
familiar burguês. Sinclair, em Demian, também passa por um processo doloro-
so, bastante similar ao narrado em “Alma de criança”, de rompimento com o
mundo “luminoso” da infância burguesa: em ambas as narrativas, os persona-
gens cometem pequenos delitos e sofrem com a culpa e com a possibilidade da
descoberta. Sinclair, de certa forma, vai dar continuidade ao processo iniciado
pela criança burguesa em “Alma de criança”, e resolve romper com o “paraíso
burguês” iniciando-se em um processo de conhecimento, primeiro do mundo
exterior (através da entrada não sem choques no mundo das perturbações e
transgressões, marcado pelos prazeres da carne, pela exaltação da vida boêmia,
pelo apreço ao dinheiro e pela insubmissão aos valores burgueses). Da mesma
forma, o jovem Sidarta também trilha, embora de modo um pouco distinto, o
caminho do rompimento: primeiramente adotando o estilo de vida de um
andarilho, completamente alienado dos valores mundanos, para adiante adotá-
los integralmente e viver como um desencontrado, entre os valores burgueses e
a rejeição a eles, ao mesmo tempo refastelando-se no luxo e esfacelando-se na
insatisfação.
98
Com Harry Haller, de O lobo da estepe, a relação de conflito que marca a
obra de Hesse em relação ao fascínio exercido pelo mundo burguês sobre o
indivíduo aparece ainda mais claramente. Harry Haller (cujas iniciais HH já re-
metem a um caráter autobiográfico direto, apenas uma das muitas brincadeiras
estilísticas feitas por Hesse com sua projeção pessoal sobre a obra
10
) é o
antiburguês em todos os sentidos: vive uma vida de ermitão, mantém hábitos
dos românticos do século XIX, não consegue se colocar no mundo, com o qual
mantém uma relação de permanente estranhamento, enfim, é um desajustado.
Ele assim vive, embora pleno de angústias e fortes tentações suicidas, por esco-
lha e convicção, como explorarei mais adiante. Ainda assim, sua relação com a
vida burguesa é ambígua e marcada por algumas concessões, como um rememorar
da infância e a necessidade de morar em casas burguesas. O próprio personagem
se dá conta disso, comentando: “O amor por essa atmosfera vinda, sem dúvida,
de minha infância, e meu secreto anseio por algo assim como um lar sempre me
leva desesperadamente por esses velhos e estúpidos caminhos”.
11
Assim, o desencantado Harry Haller nutre pela burguesia, da qual tenta
fugir e sobre a qual tece comentários acidamente críticos, uma relação dúbia,
como um túnel para uma infância luminosa, da qual não consegue, à primeira
vista, se desvencilhar totalmente. Diz Harry:
Além disso, agrada-me o contraste que apresenta a minha vida, esta minha
vida solitária, sem amor, gasta e inteiramente desordenada, em relação ao
ambiente familiar e burguês. Agrada-me respirar na escada este cheiro de
calma, de ordem, de limpeza, de decência e de domesticidade, o que, ape-
sar do meu desprezo pela burguesia, tem sempre algo de comovente para
mim (...).
12
De forma similar, também Hesse teve de romper com sua infância bur-
guesa, enfrentando a oposição de seus pais ao escolher abandonar, aos 16 anos,
os estudos regulares e optando por conseguir um trabalho de ajudante de relo-
joeiro e mais tarde de livreiro. Seu rompimento ainda maior data de sua ida para
a Suíça, em 1912, onde opta por uma vida rústica e ligada à terra, sem os confor-
tos e as atrações que a cidade burguesa oferecia, que irá perdurar até sua morte
em 1962. A saída da casa paterna e a adoção de um estilo de vida pouco conven-
cional para a burguesia alemã do início do século marcam somente o início de
um processo mais amplo e muito mais custoso, que é o da descoberta de si e da
busca de um autoconhecimento.
Aqui irão aparecer os temas clássicos do processo de conversão tratados
pelo Romantismo, com o qual Hesse irá decerto se identificar: a transgressão, o
sofrimento como iniciático e transformador, a denúncia do filistinismo burguês,
99
a busca da via oriental, a viagem xamânica, o desencantamento e estranhamento
do mundo, a idéia da singularidade e da distinção (indivíduo qualitativo), a voca-
ção (Beruf), o renascimento (Rebirth), a interiorização (pela religião e pela arte), o
cultivo de si (Bildung), a entrega de si (Self-surrender) e a consciência de si. Todo
este processo leva à libertação do indivíduo e sua constituição como pessoa,
aquela que comporta em si toda a humanidade.
A transgressão aparece com freqüência na literatura que trata da formação
da pessoa moderna no Ocidente. Como já vem sendo dito até aqui, o
pertencimento ao mundo burguês mostra-se inadequado e fruto da insatisfação.
É preciso romper com este mundo e muitas vezes o caminho encontrado é o da
transgressão. Ao transgredir, o sujeito rompe com as normas estabelecidas, põe
em xeque o código de regras sob o qual o mundo burguês constrói suas identi-
dades. Para transgredir, o indivíduo, de certa forma, tem que demonstrar uma
disposição neste sentido, dada exatamente pela inadequação com o modelo vivi-
do. Mais ainda: ele precisa identificar em si o impulso (Trieb), a força vital que o
impulsiona para fora da redoma cotidiana. Ele precisa procurar espaços para exer-
cer esta fuga do controle e da disciplina do mundo burguês, penetrar novos
mundos onde o grande círculo de regulação não o possa atingir.
A idéia da realização da natureza individual, da potência, é cara a Hermann
Hesse.
13
O impulso vital aparece freqüentemente em sua obra. Em Demian, nas
palavras de Sinclair: “Eu era um impulso da natureza, um impulso em direção ao
incerto, talvez do novo, talvez do nada, e minha função era apenas deixar que
esse impulso atuasse, nascido das profundezas primordiais, sentir em mim sua
vontade e fazê-lo meu por completo”.
14
De certa forma, podemos pensar aqui a relação proposta por Simmel en-
tre cultura objetiva e cultura subjetiva, sendo esta a realização interiorizada deste
impulso (Trieb) vital, de uma natureza interior, que só consegue se realizar na
sua interação com a cultura exterior ao indivíduo. Este força vital só vai eclodir
nas condições e contradições entre o mundo interno e o externo. Neste sentido,
a Trieb é um potencial interno latente, que requer condições externas propícias à
sua realização. Assim, ao falar de cultura objetiva necessariamente está se falan-
do de cultura subjetiva, pois ambas estão entranhadas. No entanto, na vida mo-
derna, onde o desenvolvimento tecnológico coloca a cultura objetiva em níveis
muito avançados, pode haver dificuldades para o cultivo de si efetuar-se no mes-
mo patamar.
Desta forma, a realização do impulso para qual todo homem deve voltar-
se pode se transformar em uma reação ao mundo objetivo, externo a ele, o que
pode configurar modelos de transgressão como forma de renascimento subjeti-
vo. Um exemplo de transgressão aparece na adoção de comportamentos tidos
como marginais pela sociedade. A vida boêmia pode ser um exemplo do que
100
estamos falando. Muitos são os artistas que irão, nos últimos dois séculos, bus-
car essa via de fuga da realidade opressora. Também nas obras de Hesse esse
caminho se apresenta. Emil Sinclair, durante parte da sua vida, se entrega à vida
desregrada dos noctívagos, freqüentando as tabernas, gastando suas rendas em
rodadas de bebida e conversações divagantes. Sinclair descreve suas sensações,
após o primeiro contato com a noite boêmia:
Aquela primeira bebedeira não foi a última. Entre os alunos do colégio
estava muito difundida a paixão do vinho e havia um grupo que passava
noites nos cafés bebendo e arruaçando. Eu era um dos mais jovens do
grupo, mas em pouco tempo deixei de ser considerado um garoto, a quem
os mais velhos toleram em sua companhia, para transformar-me num dos
chefes, num bebedor famoso e atrevido. Pertencia novamente e por com-
pleto ao mundo sombrio, ao demoníaco, e nele ocupava um lugar de des-
taque.
15
Esse rompimento com o mundo familiar, fruto de “impulsos” que parti-
am “sempre do mundo sombrio”, trazendo sempre consigo o medo, a violência
e o remorso”,
16
irá marcar, para o personagem, o seu primeiro renascimento. Ali
morre a infância de Emil Sinclair, sua adaptação ao mundo luminoso, sua ade-
rência ao modelo burguês, para nascer um outro, um renovado homem, liberto
do mundo anterior pela experiência do mal, pela dor da transgressão, pela busca
de um outro estilo de vida que não tão cômodo e repleto de conveniências. Mas
a relação com este mundo novo e marcado pela ausência de regras não é tranqüi-
la, e sim temperada com angústia e sofrimento. “Era quase um prazer experi-
mentar aqueles tormentos”, diz Sinclair, para a seguir confessar: “Mas apesar de
tudo eu me sentia miserável”. A dor é então um caminho, uma via de transfor-
mação e possibilidade de acesso para a interiorização e a busca de si. Assim,
resigna-se Sinclair: “São muitos os caminhos pelos quais Deus pode nos condu-
zir à solidão e levar-nos a nós mesmos. Por um desses caminhos conduziu-me
então. Foi como um sonho mau”.
17
A problemática do sofrimento e do renascimento é explorada pelo Ro-
mantismo através do século XIX. Pela dor, o indivíduo acaba fazendo a imersão
em si mesmo, se defrontando com um mundo para o qual se sentia protegido e
com o qual precisa aprender a lidar. O sofrimento é, pois, uma das etapas do
processo da descoberta de si, um dos muitos renascimentos que o indivíduo
deve passar na busca de si mesmo. Para W. James, podemos detectar dois tipos
de mente, a saudável e a mórbida (o autor procura deixar claro estar trabalhando
com tipos ideais, porque na prática esta dualidade não se apresenta tão definida).
Esta experimentaria exatamente o sofrimento pela constatação da dor, do mal e
101
da transgressão. Este, porém, seria o único caminho para a conversão autêntica.
A mente saudável manteria-se feliz, porém confinada ao mundo da superficiali-
dade; somente a mente mórbida poderia apresentar para o indivíduo o caminho
para o renascimento e a verdadeira consciência de si.
18
Por isso, esse mundo demoníaco, de rompimento pela transgressão, não
deve ser encarado como um fim em si, mas como uma etapa a ser cumprida no
caminho maior da descoberta. Como acontecerá com Sinclair, em Demian, o
personagem principal de Sidarta atravessará diversos renascimentos até encon-
trar a luminosidade de seu próprio interior. Se o sofrimento é uma passagem,
um rito de transformação, também é preciso romper com ele. Depois de anos
dedicados à vida boêmia, às bebidas, ao luxo e a jogatina, Sidarta rompe com este
mundo que tanto o desencantava e parte para uma vida simples, de balseiro,
vivendo e aprendendo com um companheiro mais velho e com o rio que lhes
serve de guia e sustento.
19
Sidarta renasce, assim como Sinclair, deixando para
trás a vida dos prazeres (a qual já havia significado um rompimento e um renas-
cer de modelos de vida anteriores) e empreendendo sua peregrinação rumo a si
mesmo. Sidarta empreende uma reflexão sobre seus constantes renascimentos,
através das diversas fases da sua vida:
A vida que levei foi deveras curiosa e conduziu-me por caminhos
estranhamente tortuosos. Quando menino, só tive que lidar com deuses e
sacrifícios. Quando adolescente, preocupei-me exclusivamente com o
ascetismo, com a filosofia, com a meditação (...). Quando moço, porém,
acompanhei os penitentes; morei na selva; suportei o frio e o calor; apren-
di a agüentar a fome; mortifiquei meu corpo. A seguir ocorreu-me o ma-
ravilhoso encontro com a doutrina do grande Buda e através dela cheguei
ao conhecimento (...). Mas coube-me também abandonar o Buda e sua
sublime sabedoria. Fui ter com Kamala e graças a ela enfronhei-me nas
delícias do amor; com Kamasvami estudei o comércio; acumulei dinheiro,
esbanjei dinheiro; habituei-me a adorar o meu estômago e a adular os
meus sentidos.(...) Não parece de fato que, lentamente, trilhando estradas
sinuosas, transformei-me de um homem numa criança e de um filósofo
num tolo? E, todavia, acho que esses desvios me fizeram um grande bem.
(...) Foi necessário que me degradasse até o mais estúpido de todos os
propósitos e pensasse no suicídio, para que acontecesse a graça (...). Tive
de pecar, para que pudesse tornar a viver.
20
Tanto para o renascimento de Sinclair quanto para o de Sidarta, quando
após o sofrimento descortina-se um novo mundo, Hesse utilizou a metáfora de
um pássaro, simbolizando a libertação. Em Demian, “a ave sai do ovo” (título
102
inclusive do quinto capítulo) e, em Sidarta, o pássaro, que no sonho parecia morto,
revigora-se, liberta-se e cumpre sua vocação para cantar.
A transgressão e o sofrimento são vias para o renascimento, mas podem ser
acompanhadas também por outras: a busca da via oriental e a viagem xamânica
podem ser exemplos neste sentido. O Romantismo alemão acenou, desde o fim
do século XVIII e no decorrer do século XIX, com uma aproximação com a cultura
oriental. Podemos perceber, com isso, uma valorização da irracionalidade, caracte-
rística do misticismo hindu, como uma resposta ao modelo do Aufklärung que irá
dominar parte do mundo artístico e literário na passagem do século XVIII para o
XIX. O Aufklärung marca uma aproximação da literatura alemã com o racionalismo
iluminista. De certa forma, a ligação romântica com o irracionalismo oriental im-
plica em uma descontinuidade com esta via do esclarecimento.
Nas palavras do próprio Hesse, tal concepção aparece claramente:
A onda espiritual proveniente da Índia, que já há um século atua na Europa,
em especial na Alemanha, tornou-se agora generalizadamente sensível e visí-
vel (...). Do ponto de vista psicológico, a Europa começa a perceber, em várias
manifestações de decadência, que a unilateralidade exagerada de sua cultura
espiritual (mais nitidamente manifestada talvez na especialização científica)
está a reclamar uma correção, uma renovação vinda do pólo oposto.
21
Mas a via oriental também marca a busca da experiência individual como
trajetória fundamental para a descoberta de si, o que Hermann Hesse irá explo-
rar em Sidarta.
O fascínio pelo Oriente aparece na obra de Hesse e também em sua própria
vida. Não só através da história de Sidarta, como, também, através da trajetória do
pintor Johann Veraguth, personagem principal de Rosshalde. O artista, desiludido
com sua vida burguesa (representada por um casamento falido e uma rotina insu-
portável, onde seus únicos redutos de salvação encontram-se na criação exaustiva
de sua obra, no olhar sobre a natureza e na dedicação ao seu filho Pierre), deixa-se
levar pela possibilidade de fuga oferecida por uma viagem ao Oriente, onde já
reside um grande amigo. Para isso, é preciso romper com as amarras que o pren-
diam ao mundo familiar e opressor, o que só consegue após um intenso sofrimen-
to com a morte prematura de seu amado filho.
22
Sem os grilhões impostos pela
hipocrisia social, Veraguth pode então partir rumo ao Oriente e também ao cultivo
de sua verdadeira individualidade. Nos conta o narrador:
Com um prazer sombrio, Veraguth sentia a dor queimar-lhe o coração de um
modo selvático, insuportável, mas também sentia que esse sofrimento o en-
grandecia e purificava como nunca antes acontecera em sua existência; e, ar-
103
dendo nesse fogo sagrado, Veraguth viu como desmoronava sua mesquinha
vida anterior, sem alegrias, falsa, informe, carente de autêntico valor, indigna
de que se lhe dedicasse sequer um pensamento, mesmo de censura..
23
A viagem ao Oriente é, pois, a alternativa para buscar seu verdadeiro ca-
minho. Processo bastante semelhante ao efetuado pelo próprio Hesse, que, em
1911, também em meio a uma crise em seu casamento e frente ao seu trabalho,
empreende uma viagem à Índia, por onde peregrina por cerca de um ano. Desse
período, nascem não só Sidarta, mas inúmeras narrativas autobiográficas e o co-
nhecido Viagem ao Oriente. Em alguns de seus relatos sobre a viagem à Índia,
Hesse proclamou sua dívida para com os ensinamentos lá colhidos. Em “Um
olhar para o Extremo Oriente”, afirma: “Os dois povos de cor com os quais
mais aprendi, e por quem tenho o maior respeito, são o hindu e o chinês. Am-
bos criaram uma cultura espiritual e artística que, sendo superior à nossa em
antigüidade, é-lhe de igual valor em cultura e beleza”.
24
Aqui podemos ver que a
relação que Hesse estabelece com a cultura oriental é a de um aprendiz. Na
verdade, Hesse está em busca, em sua peregrinação pelo Oriente, de confirma-
ção para suas certezas mais profundas e caras: de que o indivíduo, através de suas
vivências, pode tomar consciência de si e transformar-se, buscando sua unidade
e realização. A viagem ao Oriente tem o caráter xamânico da conversão, é muito
mais um símbolo de um outro renascimento e uma maneira de repensar-se a si
mesmo através do contato com o outro. Não é por um acaso que Hesse explica
em Viagem ao Oriente que esta, na verdade, é uma busca que atravessa fronteiras
e limites geográficos, sendo claramente uma viagem para dentro de si mesmo.
Diz o personagem HH (mais uma brincadeira autobiográfica de Hesse): “(...)
nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era
apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juventude da alma,
estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras.”
25
3. O consumo de massa versus a busca da distinção individual:
estranhamento e denúncia
Já falamos aqui, portanto, de alguns dos traços característicos do Roman-
tismo alemão que aparecem com recorrência na obra de Hermann Hesse: a
transgressão, o sofrimento como transformador, o renascimento, a busca da via
oriental e a viagem xamânica. Mas a busca de si, do conhecimento do self, pode se
dar também por outros caminhos. A denúncia do filistinismo burguês, acompa-
nhado pelo desencantamento e estranhamento em relação ao mundo, também
são vias de acesso para a interiorização que aparecem no Romantismo e na obra
(espelho e reflexo da vida) de Hermann Hesse.
104
Sabemos que o Romantismo alemão vai se empenhar em denunciar a aco-
modação, a falta de autenticidade, a hipocrisia e a o descomprometimento do
mundo burguês com o crescimento do indivíduo. A constituição da pessoa mo-
derna ocidental irá passar exatamente por um descontentamento, quase um
niilismo total, do sujeito perante o mundo em que vive. Ele se sente estranho e
sem pertencimentos em relação a esse mundo, o que lhe deixa em permanente
sensação de angústia.
Este mundo está contaminado, para os personagens de Hesse, por um con-
sumo desenfreado, uma adequação aos modelos consumistas com os quais não há
identificação possível. Harry Haller, de O lobo da estepe, se enxerga como um “cor-
rompido” quando aceita instalar, em seu quarto de “romântico”, um gramofone.
26
Pensar que alguém pudesse me pedir que tivesse em meu quarto, ao lado
de Novalis e Jean-Paul, em meu tugúrio de pensamento e de reflexão, um
gramofone a tocar música de dança americana e que teria de dançar, tudo
isso era certamente duro demais para que eu pudesse suportá-lo.
27
Ao mesmo tempo, porém, esse distanciamento e estranhamento em rela-
ção ao mundo burguês são percebidos positivamente, seja por representarem
uma fuga, um escapismo, uma alienação perante a este mundo duramente criti-
cado, seja por representarem um traço distintivo, uma marca de singularidade (a
tal marca de Caim que os eleitos trazem como identificação, na explicação de
Max Demian que primeiro horroriza depois fascina Emil Sinclair em Demian) e
distinção.
Harry Haller talvez seja o personagem ideal para analisarmos esta relação
de estranhamento e distanciamento frente ao mundo que o cerca. A angústia
permanente indica o desconforto de Harry, que não consegue se enquadrar nos
modelos aclamados por aquela sociedade burguesa. Ele não se adapta às exigên-
cias sociais, tornando-se um recluso. As sereias do consumo não lhe seduzem,
pois ele prefere a simplicidade das tabernas sombrias e a companhia de seus
livros e garrafas de vinho barato aos letreiros de néon que começam a superlotar
a cidade, oferecendo o lazer de consumo de massa que Harry (e também Hesse)
abomina. As palavras que seguem definem bem seu estranhamento frente à
massificação burguesa que o cerca:
Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema.
Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que
prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos
cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetá-
culos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem
105
compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais
milhares de outros tanto anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo
nos meus raros momentos de público, aquilo que para mim é felicidade e
vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção;
na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa
música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados
que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou
louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes –
aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem ali-
mento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.
28
Não é por acaso que o teatro para o qual Harry será “chamado” é um
teatro mágico, com entrada “só para os raros”, “só para os loucos”.
29
A marca da
distinção é clara. Ele não é como os outros, ele vagueia por esse mundo sem
conseguir se enquadrar. Porque ele é claramente um indivíduo no sentido quali-
tativo,
30
aquele que se pauta por sua singularidade, por sua própria experiência.
Um indivíduo que se distancia do rebanho, que não encontra a resposta para a
felicidade na segurança da coletividade, mas somente em si mesmo, somente
através de sua interiorização. De certa forma, procura renegar o modelo da “ori-
entação pelos outros”, pela ótica do consumo, de que nos fala Riesman em A
multidão solitária.
31
A interiorização pode se dar de diversas formas. O caminho da religião e o
caminho da arte, por exemplo, são temáticas que preocuparam com freqüência
os autores que trataram das questões aqui discutidas. Como já dito anterior-
mente, W. James aborda a questão da conversão via religião. L. Dumont, por
exemplo, demonstra como há uma superação da religião via estética, trabalhan-
do com a trajetória de Philipp Moritz, onde a imanência substitui a
transcendência.
32
Em Hermann Hesse, as duas vias de conversão para a interiorização são
utilizadas. O indivíduo caminha para si mesmo pela via da arte, da estética (casos
de Veraguth e Harry Haller) ou pela religião (casos de Emil Sinclair, que abraça a
causa do deus Abraxas, divindade que conjuga os dois mundos, o luminoso e
sombrio, e representa a própria condição humana, e de Sidarta). Mas é interes-
sante notar que o próprio Hesse, em sua vida, acabou por seguir os dois cami-
nhos. Também Hesse procurou a interiorização e, consequentemente, a desco-
berta de si e a sua vivência como indivíduo, tanto pela arte quanto pela religião.
Através destes dois caminhos, buscou singularizar-se como indivíduo e cons-
truir sua plataforma de vida como pessoa.
Neste sentido, a arte pode ser pensada como realização da vocação, de um
chamado individual.
33
Temos aqui a idéia de Beruf aparecendo com clareza. Cada
106
indivíduo tem sua vocação a cumprir, e sua superação do sofrimento e do
estranhamento perante o mundo só serão obtidos com a consolidação desta vo-
cação. Sinclair depõe em Demian: “todo homem tinha uma ‘missão’, mas nin-
guém podia escolher a sua, delimitá-la ou administrá-la a seu prazer”.
34
Nada
resume tão incisivamente essa visão sobre a vocação como único caminho para si
mesmo do que as palavras finais de Varaguth, em Rosshalde, antes de abandonar
sua vida anterior e embrenhar-se pelo Oriente e pelo seu próprio interior:
Agora restava-lhe apenas a sua arte, de cujo domínio nunca se sentira tão
seguro como nesse momento de sua vida. (...) Eis o que lhe restava, eis o
único valor que ainda sobrava em sua desditosa vida – essa imperturbável
solidão e esse frio prazer de representar e recriar o mundo. Seu destino
era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso.
35
Apesar de adotar a conversão via arte como maneira de alcançar a contem-
plação e a realização do self, Hesse, ao contrário de outros artistas que renegaram
a dimensão religiosa, procurou conjugá-las. Assim, o caminho da crença, da bus-
ca de uma religião com traços orientais que libertasse o indivíduo, foi uma marca
de sua trajetória. Não aquela religião de sua infância, marcada pelo pietismo,
pela culpa e pela sensação de conformismo. Mas uma religião que comportasse
também um potencial libertador, e não somente repressor. A relação de Hesse
com a busca religiosa, sem dúvida, foi marcada por uma ambigüidade, uma ex-
perimentação “entre o respeito e a revolta”.
36
Podemos pensar a modernidade da concepção religiosa de Hesse a partir
de um viés proposto pelo próprio escritor: a idéia de que cada indivíduo, como
uma mônada, encerra em si a divindade. Neste momento, é preciso considerar
aqui a influência que a psicanálise exerceu sobre a trajetória pessoal e artística de
Hermann Hesse e como também esta se transformou em uma via de conversão
do indivíduo. Hesse sempre manifestou admiração pela psicanálise então emer-
gente no início do século. Mas sua relação estreitou-se mesmo a partir de mea-
dos da década de 1910, quando, movido por intensa crise pessoal, iniciou uma
série de sessões com Josef B. Lang, discípulo de Jung. Mais tarde, será com o
próprio Jung que Hesse irá se consultar. Esses contatos serão fundamentais no
sentido de permitir não só uma conversão pessoal de Hesse rumo à interiorização,
mas para sua concepção de como o indivíduo pode ser uma unidade e ao mesmo
tempo comportar a humanidade como um todo. Estas percepções irão se refle-
tir diretamente em seus romances, que apresentarão claramente as diversas
maneiras de pensar que o autor atravessará a respeito da formação do indivíduo,
do seu encontro com seu “eu” e com a fragmentação de sua identidade.
107
4. A alma tem “mil flores”
A compreensão de que o indivíduo deveria trazer em si a dualidade do
mundo, tanto sua parte luminosa e retilínea como seus aspectos sombrios e
tortuosos, já aparece claramente em Demian. Neste sentido, o livro é, sem dúvi-
da, uma ruptura com as obras anteriores. A visão de que cada homem é ao mes-
mo tempo bom e mau, traz dentro de si os dois mundos, é chave para compre-
endermos a trajetória de Sinclair. A respeito disso, temos as palavras do próprio,
ao ser apresentado à idéia síntese de Abraxas proposta por Demian:
Contudo suas palavras haviam atingido em mim o enigma que durante os
meus anos de juventude me acompanhara por todas as horas e sobre o
qual nunca dissera a ninguém qualquer palavra. O que Demian sabia sobre
Deus e o Diabo, sobre o mundo oficialmente divino e o mundo demoní-
aco, era exatamente meu próprio pensamento, meu próprio mito, minha
concepção dos dois mundos: o luminoso e o sombrio.
37
Em Sidarta, a mesma visão sobre os dois mundos reaparece, sendo
relativizada no final libertador. Aí a concepção hindu de que cada homem encer-
ra infinitas encarnações e se desdobra em infinitas faces aparece claramente no
deslumbramento de Govinda, companheiro de longa data de Sidarta, quando
descobre ao contemplar o amigo que nele encontra-se toda a humanidade:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em
vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de ros-
tos, centenas, milhares, todos eles aparecia, sumiam e todavia davam a
impressão de estar presentes simultaneamente, rostos esses que a cada
instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta.
38
Os anos de psicanálise, com certeza, já tinham provocado mudanças con-
sideráveis na maneira de Hesse conceber o indivíduo. De um primeiro rompi-
mento com a figura sem dubiedades do herói burguês, de caráter probo e isento
de ambigüidades, presente principalmente no folhetim da literatura de massa
que Hesse tanto abominava, surgiu a possibilidade do indivíduo com dualidades
claras: nele estava o mundo das luzes e também o das perversões. Mas sua con-
cepção acerca da formação da personalidade do indivíduo se amplia, via psicaná-
lise, é já lhe é impossível mesmo conceber o ser humano preso a somente duas
metades. A fragmentação do eu, esse “eu dividido”, múltiplo e disperso, encon-
tra-se magistralmente descrito em O lobo da estepe. Em seu caminho em direção
a si mesmo, Harry Heller parte de uma simples decomposição de sua persona-
108
lidade em duas metades (o homem comum Harry e o desajustado “lobo da
estepe”) para uma concepção bem mais complexa, onde a multiplicidade da per-
sonalidade individual é a base da própria existência.
Hesse define assim a personalidade, com viés psicanalítico:
Que o “homem” não é alguma coisa já criada, mas apenas uma exigência do
espírito, uma possibilidade longínqua, tão desejada quanto temida, e que o
caminho a que isso conduz só vai sendo percorrido em pequenos impulsos
e debaixo de terríveis tormentos e sonhos, precisamente por aquelas raras
individualidades, para as quais hoje se prepara o patíbulo e amanhã o monu-
mento – é uma suspeita que vive também o lobo da estepe.
39
Mas Harry não consegue escapar à armadilha burguesa, pois, ao contrapor
o homem ao lobo, no fim reduz a complexidade humana de maneira a controlá-
la. Mas já é um avanço, afirma Hesse: “Mas, enfim, o nosso Lobo da Estepe
descobriu dentro de si ao menos a duplicidade fáustica”.
40
No entanto, é preciso
ainda descortinar as possibilidades de uma observação maior de si e do mundo,
remetendo ao espectador de que fala Boltanski.
41
Hesse critica esta ausência de
observação em Harry Haller: “Provavelmente nunca observou com atenção um
lobo autêntico; então veria, talvez, que nem mesmo os animais possuem a uni-
dade da alma, que também neles, atrás da bela e austera forma do corpo, vive
uma multiplicidade de desejos e de estados.”
42
Aqui a via oriental e a psicanálise se convergem: na concepção do indivíduo
como múltiplo, como um “eu fragmentado” que comporta, na unidade, toda a
humanidade. E somente pela percepção deste interior, ou seja, somente pela via
da interiorização, é possível libertar o impulso vital.
Em vez de reduzir o teu mundo, de simplificar a tua alma, terás de recolher
cada vez mais mundo, de recolher no futuro o mundo inteiro na tua alma
dolorosamente dilatada, para chegar talvez um dia ao fim, ao descanso. O
mesmo caminho foi percorrido por Buda e todos os grandes homens, uns
conscientes, outros inconscientemente, na medida em que a fortuna favore-
cia a sua busca. Nascimento significa desunião do todo, limitação, afasta-
mento de Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa
individualidade, chegar a ser Deus, quer dizer: ter dilatado a alma de tal
forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo.
43
A alma, então, tem “mil flores”, e cabe ao indivíduo abrir-se a todas. O
indivíduo deve converter-se, mas pela rendição e entrega de si (Self-surrender).
Aqui se completa o processo do cultivo de si, o Bildung. A formação da pessoa
109
moderna ocidental se faz na busca da interiorização, da consciência de si, na
realização plena do indivíduo em todas as suas potencialidades. Por isso Hermann
Hesse se autodenomina um “defensor do indivíduo”: porque nele estão as pos-
sibilidades de construção de um humanismo que valoriza a individualidade, a
complexidade das personalidades individuais. Hesse não vê possibilidades na
construção de uma nova Humanidade no rebanho e na coletividade, mas somen-
te na unidade fragmentada do self individual. Hesse conclama: “Dizei sim a vós
próprios, à vossa pessoa individual, a vosso isolamento, a vossos sentimentos, a
vosso destino! Não existe outro caminho”.
44
Não há história fora do indivíduo,
nem salvação: “O homem é o centro do universo. Em torno de cada pessoa
parece o mundo girar. Cada ser humano, cada dia de sua vida, é o ápice, o ponto
final da história”.
45
Assim, Emil Sinclair conclui em Demian: “E afastar-se de si
mesmo é um pecado”.
46
5. Algumas conclusões
Sem dúvida, tais pontos parecem evidenciar a proximidade de Hermann
Hesse com o Romantismo alemão e suas temáticas mais freqüentes. Mas é im-
possível não perceber e apontar também os traços distintivos da obra de Hesse,
principalmente em decorrência de todo um contexto social, político, econômico
e cultural que vai marcar a Alemanha nas primeiras décadas deste século. Além
disso, parece importante atentar para a influência de outros autores, que não
somente Goethe, na formação literária de Hesse.
Sobre este ponto, é interessante observar que os escritores românticos
Jean-Paul e Novalis, juntamente com o pensador alemão F. Nietzsche, são as
principais referências de Hesse no decorrer dos seus romances. Emil Sinclair é
um entusiasta de Novalis, Harry Haller confessa sucessivas vezes sua predileção
por Jean-Paul e Novalis e sua admiração pela obra de Nietzsche. Nas cartas
trocadas por Thomas Mann e Hermann Hesse, é o primeiro que recorrente-
mente manifesta sua admiração pela obra de Goethe. Sem dúvida, Hesse é um
dileto admirador de Goethe, mas nutre por este uma relação dúbia de veneração
e desconfiança. A passagem de O lobo da estepe em que Harry Haller se indigna
com o busto de Goethe se prestando à ornamentação de uma sala tipicamente
burguesa é demonstrativa deste incômodo do próprio Hesse com a figura do
grande nome da literatura alemã.
De fato, a trajetória do poeta romântico Jean-Paul em muito se assemelha
a do “lobo da estepe” e a do próprio Hesse. “Original e solitário”, “Jean-Paul
sentia repulsa particular por Goethe e acusava-o de ‘egoísmo genial’”.
47
Também
tal qual Harry Haller, que ao final de O lobo da estepe de certa forma se concilia
com o modo de vida burguês, assim Jean-Paul “concebe a sociedade burguesa
como algo de rigidamente estabelecido, como um destino inevitável, à qual a
110
fantasia não consegue oferecer uma alternativa convincente”.
48
Também Novalis
era um “marginal e solitário”.
49
A celebração da noite e o apelo às coisas místicas,
característicos de sua obra, também aparecem em O lobo da estepe.
É talvez em Mörike – poeta romântico a quem Thomas Mann inclusive
irá comparar Hermann Hesse
50
–, no período do Vormärz que antecederá a
fracassada revolução de 1848, que Hesse encontrará alguns temas que lhe serão
fundamentais, tanto na sua obra quanto na sua própria existência. Dois conceitos
passam a ser fundamentais neste período – Weltschmerz (dor existencial) e
Zerrissenheit (dilaceração interior). Somada a estes, aparecerá a temática da aliena-
ção. Com o desencantamento progressivo com a burguesia, os artistas do século
XIX, principalmente aqueles que se manterão afinados com o Romantismo, vão
desenvolver cada vez mais uma “fuga” para a interioridade.
Hesse, sem dúvida, aparece como herdeiro desta tradição. Sua obra cele-
bra o reencontro com os temas até aqui descritos, porém ganha acepções pró-
prias do contexto do século XX, no qual o autor vive e escreve.
Vários são os fatores externos que caracterizarão sua obra e, de certa for-
ma, marcarão sua separação dos modelos do Romantismo do século XIX. Em
primeiro lugar, o crescimento de uma indústria cultural, que projeta cada vez
mais a literatura de massa sobre o público e começa a fazer uso, em escala cres-
cente, de uma poderosa mídia emergente. Vários autores, incluindo Benjamin e
Adorno, entre outros, irão procurar pensar este fenômeno da massificação da
cultura, preocupados com suas conseqüências sobre a estética e a literatura de
um modo geral. Hesse também manifesta preocupação quanto a este fenôme-
no. Em O lobo da estepe, Harry Haller externaliza a opinião desmerecedora de
Hesse acerca da massificação e do consumo em série da literatura e das formas
de entretenimento.
A massificação é instrumento também da propaganda política do nacional-
socialismo, levando à efetivação do nazismo e ao período de ascensão hitleriana.
Hesse, desde a primeira guerra mundial, a qual previra pesarosamente antes
mesmo de seu estouro, manteve posições que despertaram polêmica e lhe ren-
deram diversas manifestações de protesto e repúdio. Absolutamente pacifista,
sua postura antibelicista foi explicitada ainda antes da primeira grande guerra.
Foi acusado de traidor da pátria, principalmente por ter se mudado para a Suíça
e adquirido a cidadania deste país. No período entre as duas guerras, não deixou
de alertar para os perigos da formação nazista e para a iminência de uma nova
guerra. Criticava duramente a formação de um rebanho sob a égide do Partido
Nacional-Socialista e temia pelo futuro da humanidade. Condenava a massificação
pelo que ela representava de desvio no caminho da constituição da verdadeira
humanidade, como já descrito anteriormente, somente possível pela imersão
em si mesmo, pela interiorização, pela singularidade individual.
111
Assim, Max Demian fala sobre a diferença entre o indivíduo e a coletividade:
A comunidade (...) é uma coisa muito bela. Mas o que vemos florescer
agora não é a verdadeira comunidade. Essa surgirá, nova, do conhecimen-
to mútuo dos indivíduos e transformará por algum tempo o mundo. O
que hoje existe não é comunidade: é simplesmente rebanho. Os homens
se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia em seus
iguais: rebanho de patrões, rebanho de operário, rebanho de intelectuais...
E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo
consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus
próprios impulsos interiores.
51
Hesse não é, portanto, um autor anti-sociedade, como alguns insistiram
em classificá-lo e mesmo a repudiá-lo. A força da Confraria em Viagem ao Oriente
ou a formação de uma comunidade/Humanidade que valoriza o indivíduo em O
jogo das contas de vidro, sua última obra, marcam esta visão positiva sobre o
gregarismo, desde que apoiado na individualidade, na pessoa autônoma e consci-
ente de si. Em seu posfácio a O lobo da estepe, Hesse critica seus leitores que
viram no romance uma rendição do indivíduo ao sistema coletivo. Para Hesse, a
mensagem do livro é positiva, “não conduz à destruição e à morte, mas, ao con-
trário, à redenção”,
52
pois fala de um “mundo de fé, sereno, multipersonalístico
e atemporal”.
53
Pela descoberta de si, o homem pode inserir-se no mundo, por-
que é já um indivíduo consciente.
Da mesma forma, não é possível desconsiderar, como já demonstrado
aqui, o impacto que a psicanálise trouxe à sua obra. Desta forma, não cabe clas-
sificar a Hermann Hesse como um romântico na acepção histórica do termo,
por uma distorção anacrônica. O mundo do século XX, onde Hesse está produ-
zindo sua obra, é outro. Podemos perceber uma forte influência romântica so-
bre sua obra, sem dúvida. Mas as guerras, a maquinização crescente da socieda-
de, os processos de massificação, o consumo em série, a experiência do autor
com a psicanálise, as conturbações políticas, tudo isto se reflete diretamente na
sua obra. Hesse escreve em tempos de crise, suas tentativas de encontrar uma
resposta e uma saída, ou no mínimo pontos de fuga, para este desmoronamento
do mundo são visíveis. Em suas cartas, trocadas por mais de três décadas com
Thomas Mann, Hesse alterna regularmente momentos de desânimo com su-
peração, principalmente pela via do trabalho. Em certos momentos, ambos apre-
sentam-se como dois desalentados, prestes a sucumbir. Em outros, a chama da
criação os impele para frente. Mesmo assim, em toda a sua obra, Hesse procura
conduzir o leitor para a construção de uma nova moralidade, intimamente ligada
a um processo de reconstrução do mundo através da arte e do indivíduo, o qual,
112
no entanto, não pode ser entendido como centrado e único, mas como um sujei-
to fragmentado, com múltiplas identidades, antecipando, em muito, as discus-
sões que iriam marcar as reflexões nas sociedades globalizadas.
Ana Lucia S. Enne
Professora da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Notas
1. Hesse, H. e Mann, T. (1975:108).
2. A ponte entre Hermann Hesse e os românticos é também o tema principal de
Book (1952).
3. Ver Bruford (1975).
4. Hesse e Mann (1975:108).
5. Interessante observar que, apesar do reconhecimento de Mann e de André
Gide, entre outros, da aclamação do público e do recebimento de prêmios im-
portantes, como o Goethe e o Nobel, Hermann Hesse não teve o reconheci-
mento que outros nomes da literatura alemã deste século obtiveram. O próprio
Hesse faz uma observação bem-humorada a este respeito, por ocasião de sua
premiação com o Nobel em 1946: “e muitos velhos leitores meus alegraram-se
porque agora fica claro que a fraqueza que tinham por mim não era apenas um
pecado”. In: Hesse e Mann (1975:87).
6. Idem, p. 108. É importante observar, ainda na citação anterior, mas com res-
peito ao ponto agora comentado, o uso da expressão “e ainda assim intelectual”
como um breve aceno de Mann na direção desta fusão entre tradição e presente
na obra de Hesse e para a fusão entre ideais românticos e iluministas. Mann
posiciona-se ainda mais claramente no prefácio de uma edição americana de
Demian: “Apoiar o novo, sem desistir do velho”. Diz Mann: “Os melhores ser-
vos do novo – e Hesse é um exemplo disso – serão aqueles que conhecem o
antigo, e o amam, e o transportam para dentro do novo” (p.174).
7. Tal conceito será desenvolvido na próxima parte deste trabalho.
8. Segundo Sílvia Ferraz, as constantes reminiscências de Hesse acerca do verão
são uma maneira do autor resgatar a infância perdida. Afirma a autora: “De fato,
a atmosfera envolvente do mês em que nasceu [julho] o acompanha sempre de
perto na vida, renovando-lhe periodicamente energias físicas e psíquicas (...) e
entre muitos outros [verões] destacam-se os verões românticos em ‘Herman
Hauscher’, os verões saudosos do garoto Hans em ‘Unterm Rad’, o longo verão
de vagabundagem andarilha de ‘Knulp’, o verão do pintor Veraguth in ‘Rosshalde’,
o verão oriental de Hesse, o verão de ‘Klein e Wagner’ na Itália e o ‘O último
verão de Klingsor’”. Ver: Ferraz (1960:9).
9. Hesse (1970:9).
10. Na própria obra, o personagem de Harry Haller fala de um amigo de infân-
cia, chamado Hermann, a quem em vários momentos acredita encontrar. Sua
companheira na jornada de autoconhecimento se chama Hermínia e muitas ve-
113
zes se confunde com Hermann e com o próprio Harry. Sobre isso, Theodore
Ziolkowski comenta: “No esboço autobiográfico ‘Infância de mágico’, Hesse
confidencia ter sido seu desejo mais ardoroso, quando criança, possuir a capaci-
dade mágica de desaparecer ou mudar de forma. O equivalente adulto desse
poder mágico, prossegue ele, era o dom de se esconder arteiramente por trás
das figuras de seu mundo ficcionista”. In: Hesse (1976:9).
11. Hesse (1955:31)
12. Idem, ibidem.
13. Por isso deveria causar estranheza ao autor, se vivo fosse, a acepção dada às
suas palavras acerca da natureza pelo grupo “Pensamento Ecológico” em sua
homepage na Internet. Nela, a frase “o ser humano só cumpre seu nobre dever
quando tenta aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu”, que no contexto de
Demian (de onde foi retirada) remete à realização do impulso vital de Emil Sinclair,
é utilizada pelos ecologistas como epígrafe de um texto acerca da destruição da
natureza na atualidade. O endereço da página é: http://www.infolink.com.br/
peco/net106.htm.
14. Hesse (1970:125).
15. Hesse (1970:74).
16. Idem, op. cit., p. 49.
17. Idem, op. cit., p. 76.
18. Embora W. James esteja se referindo às experiências de conversão religiosa,
sua abordagem cabe bem no processo de conversão rumo à interioridade, prin-
cipalmente pela aclamação ao sofrimento como passagem fundamental nesta busca
do cultivo de si. Ver James (1958).
19. Uma abordagem interessante sobre a metáfora do rio em Sidarta encontra-
se no artigo de J. Sobel na Herman Hesse Page, criada na Internet. Diz o autor:
“Hesse also uses the symbolism of the river to unify Siddharthas’s experience.
The river serves as a separation between the experience of the mind and the
spirit on the one side, and the experiences of the body and the senses on the
other”. Conferir Sobel (1997).
20. Hesse (1997:105).
21. Idem (1971a, p. 26).
22. Interessante reparar o paralelo entre o conteúdo de Rosshalde e o conto de
Henry James, “The Author de Beltraffio”, de 1884. Uma análise do conto en-
contra-se em Monk (1996).
23. Hesse (1956:152).
24. Idem (1971a:46).
25. Idem (1959:29).
26. Interessante observar que esta mesma ética romântica, no entender de
Campbell, foi fundamental para o fortalecimento do espírito do consumo e para
a consagração do hedonismo moderno. Ver Campbel (1995).
27. Hesse (1955:120).
28. Idem, op. cit., p. 34.
29. Idem, op. cit., pp. 35 e 36.
114
30. Simmel (1971).
31. Riesman (1961).
32. Dumont (1991).
33. Neste sentido, ver Goldman (1988).
34. Hesse (1970:124).
35. Idem (1956:173).
36. Gellner (1997).
37. Idem (1970:61).
38. Idem (1997:158).
39. Idem (1955:67).
40. Idem, op.cit., p. 68.
41. Boltanski (1993).
42. Hesse (1955:68).
43. Idem, op. cit. p. 69.
44. Idem (1971b:61).
45. Idem, op. cit, p. 41.
46. Idem (1970:64).
47. Beutin (1993:280).
48. Idem, op. cit, p. 281.
49. Idem, op. cit., p. 268.
50. Hesse e Mann (1975:160).
51. Hesse (1970:153).
52. Idem (1955:224)
53. Idem, ibidem.
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Resumo
Este artigo tem como tema principal a obra literária de Hermann Hesse, consagrado escritor
alemão. A proposta fundamental é pensar de que forma Hesse pode ser entendido tanto como
um herdeiro do Romantismo alemão do século XIX, quanto um escritor de seu tempo. Dessa
forma, Hesse conjuga reflexões sobre a formação do indivíduo ocidental com preocupações
sobre a formação de uma cultura de massa nas primeiras décadas do século XX. E, principal-
mente, com percepções acerca do caráter fragmentado e múltiplo das identidades.
Palavras-chave
Hermann Hesse, indivíduo, identidade, cultura de massa.
Abstract
This article has as main subject the literary composition of Hermann Hesse, consecrated
German writer. The proposal basic is to understand Hesse in such a way how much an heir of
the tradition of the German Romantism how much an author of its time. Of this form, Hesse
conjugates reflections on the formation of the individual occidental person with concerns on
the formation of a culture of mass in the first decades of century XX. And, mainly, with
perceptions concerning the fragmented and multiple character of the identities.
Key-words
Hermann Hesse, individual, identity, mass culture.